O caso em si e o julgamento pelo STF ganharam a dimensão de
escândalos nacionais. Certamente porque os fatos têm a ver com a
estrutura de poder e a promíscua relação público-privado, envolvem
figuras de destaque no jogo político e porque incomodam mesmo a
sociedade e polarizam as opiniões. Mas, em especial, porque permitem aos
cães de guarda do sistema resgatar o sentido da ordem que ficou
desgastado e desmoralizado na sequência de casos escabrosos torrados no
forno da pizzaria.
A grande imprensa empresarial-neoliberal-conservadora deitou e rolou
na exploração do escândalo, em 2005, e agora em 2012. Afinal, o episódio
todo fornece para a direita uma oportunidade espetacular de mostrar que
o ainda jovem Partido dos Trabalhadores, nascido das lutas populares
contra a ditadura e combativo defensor das classes subalternas, crítico
feroz da corrupção patrocinada pelas elites brasileiras, também entrou
na lama, jogou no lixo bandeiras políticas e éticas que poderiam ter
diferenciado profundamente a gestão Lula dos governos FHC, Collor e
Sarney.
No campo jurídico, o caso é fértil em ilicitudes corriqueiras e
amplamente difundidas e praticadas nos vários níveis da máquina pública.
Mas, sempre, falsamente condenadas pelas oligarquias, e, outrora,
duramente combatidas e inaceitáveis pelas esquerdas brasileiras. O
entendimento do senso comum, aquilo que está na cabeça de todo
trabalhador, diz que o desvio de dinheiro público é crime, precisa ser
punido com rigor; corromper políticos é vergonhoso, uma pratica
condenável; sonegar impostos e circular recursos financeiros de forma
clandestina e por contas disfarçadas em paraísos fiscais, é coisa de
ladrão, cidadão trabalhador nem passa perto disso, e os culpados
precisam pagar.
É claro que o procurador-acusador e a maioria dos ministros do STF se
esmeraram no julgamento, avançaram bastante na lógica cartesiana que
possibilita juntar todos os neurônios nos esforços da intuição e da
dedução. Se não seguiram os ritos formais tradicionais, se foram
criativos ao extremo na jurisprudência, se assumiram, em nome dos 500
anos de impunidade, o papel de carrascos da história, se erraram, no
geral, pela voracidade inédita, acertaram também no varejo do senso
comum – que pede, há séculos, que, afinal, todo crime seja justamente
punido – não importa a origem, a crença, a cor ou a classe social dos
agentes criminosos.
A lição que se espera do julgamento do ‘mensalão’ é uma só: que a
mesma gana do STF seja usada pelo próprio tribunal, e por outros
tribunais, para punir todos aqueles que alimentaram a lavanderia do
Banestado, que criaram 83 empresas de fachada sob o manto do Banco
Opportunity, que fizeram evasão de divisas em operações criadas pela
Camargo Corrêa, que socorreram com dinheiro público a fraude do Banco
Econômico, que usaram o know-how da agência do Marcos Valério para
disseminar pelo Brasil afora o “mensalão” do PSDB, o “mensalão” do DEM e
inúmeras bandalheiras dos mais diferentes calibres. Com certeza, se o
Poder Judiciário pegar mesmo, para valer, todo os empresários
sonegadores de impostos, o Brasil terá muito mais recursos para a saúde,
educação, moradia, saneamento básico, etc.
No campo político, o estrago do “mensalão” tem sido muito maior. Desde que o PT,
subordinado ao governo Lula, foi colocado, pela alta cúpula dirigente,
na vala comum dos partidos burgueses, com suas práticas pragmáticas,
onde o vale tudo não guarda limites éticos e políticos, as direitas –
midiáticas e partidárias – avançaram enormemente em todas as frentes,
não apenas para desqualificar e desmilinguir a energia transformadora do
próprio PT, mas, especialmente, para imobilizar as lutas dos
trabalhadores, a autenticidade dos sindicatos e dos movimentos sociais, e
de todas as forças de esquerda, que acabaram por arrefecer seu poder de
fogo para não alimentar mais ainda o ataque das elites reacionárias
contra um governo fragilizado ética e politicamente, embora popular e
com amplo respaldo nas massas empobrecidas e desorganizadas.
Dever da autocracia
Não dá para falar do processo do “mensalão” se não houver o mínimo de
questionamento sobre a ação deliberada da direção petista na busca de
aliança com políticos e partidos nitidamente fisiológicos e
conservadores como o PP de Paulo Maluf, o PL de Waldemar Costa Neto e o
PTB de Roberto Jefferson. O que poderia justificar o PT, se é mesmo um
partido de esquerda, desviar dinheiro público e/ou fazer empréstimos
bancários para custear as campanhas eleitorais e/ou buscar apoio
parlamentar com partidos e políticos da direita? Afinal, quem ganha
eleição com tais alianças, vai fazer o que da vida? Quem monta uma base
parlamentar com tais alianças consegue avançar em qual direção? Vale
mesmo tudo em nome da governabilidade? Não é papel de a esquerda fazer o
enfrentamento político com as forças conservadoras e de direita? O
método do convencimento político não é mais próprio da esquerda do que o
método da compra pecuniária?
Evidentemente, uma lição significativa de todo o processo do
“mensalão”, para o PT, as esquerdas e os trabalhadores, seria a
tentativa de resgate urgente das bandeiras e métodos que marcaram a
atuação do PT durante anos, antes de se embrenhar pelos atalhos dos
cargos públicos, os quais, mesmo na máquina pública e na estrutura do
Estado, não conferem poder verdadeiro – já que as elites dominantes
ditam as regras do modelo econômico, controlam as ações políticas e,
quando querem, organizam julgamentos com alvos devidamente escolhidos.
O avanço das esquerdas depende muito da visão crítica, da
combatividade política e, também, de se livrar das amarras estabelecidas
em vínculos com a direita. Mais, também, depende de retomar o antigo e
saudável hábito de se fazer a autocrítica, quando se erra. Afinal, por
que todo o PT e o conjunto das esquerdas devem pagar pelos equívocos de
alguns?
Por: Hamilton Octavio de Souza é jornalista.